Num olhar
Há momentos nas nossas vidas que, sabêmo-lo, por mais que vivamos, por mais que a nossa existência se prolongue e que a memória se disperse, nunca sairão de nós. Porque esses momentos são o que somos nós.
Ia levar a minha filha de volta a casa da mãe. Como sempre, nós dois, sozinhos no carro: eu ao volante e ela sentada na sua cadeirinha, cintada ao banco traseiro, por trás do assento do pendura. É o lugar onde prefiro que ela viage, pois assim, sempre que a condução me permite posso voltar-me e vê-la sem dificuldade.
Ela ia a devorar umas pastilhas que lhe havia comprado no café depois de sairmos de minha casa. Umas pastilhas de chupar de marca Pez - coisa já antiga, esta. A certa altura pedi-lhe uma. Pedi-lha porque de repente me deu uma certa saudade de recuperar um sabor, há tantos anos para mim desaparecido. Ao meu pedido ela respondeu:
- Ó pai, não te posso dar. É que já só tenho três.
Fiquei destroçado por aquela resposta. A minha filha não é, de todo, uma criança egoísta. Tem alguma dificuldade em emprestar e partilhar brinquedos mas não tanta como alguns outros miúdos e sobretudo não tanta quanto a sua educação extremamente mimada, mea culpa também, o fizesse prever; assim sendo não esperava aquilo. Não esperava uma decisão tão "forte" da parte dela.
Respirei fundo e fiz-lhe uma prelecção sobre o que é ser-se egoísta, o significado de dar e o valor há na partilha das coisas que mais gostamos com as pessoas que mais gostamos. Não foi longa nem cansativa mas veio-me de dentro; na verdade fiquei deveras sentido e magoado pela atitude dela. Poderá dizer-se que uma criança de sete anos não terá ainda consciência de alguns actos ou práticas e que não saberá, pois não tem ainda possibilidade de entendimento para tal, o que significa tomar, ou não, certas atitudes. Se isto é correcto para muitas coisas, não o é para outras e o que se passou a seguir confirma esta minha convicção.
Ela ouviu calada tudo o que eu disse. Ainda esboçou um pequeno protesto ao princípio, mas depois parou. Eu terminei. Naquele momento estava triste; entristecido por se estarem a formar na minha própria filha trejeitos de personalidade, que não só não têm nada que ver com a dos progenitores e amargurado por me sentir impotente para alterar o rumo.
Não sei quanto tempo fiquei envolvido nos meus pensamentos. Não havia semáforos e não fiz o costumeiro gesto de me voltar para ela sempre que o sinal está vermelho e tenho de parar. "Acordei" ao aperceber-me que havia um silêncio anormal no carro. Ela raramente pára de falar ou cantar. Foi, não tenho dúvidas, esse silencio que me fez virar e olhá-la. E foi o que vi quando me virei, foi esse momento, que eu para sempre parei dentro de mim, que fotografei com os meus olhos e o meu espírito e que, haja o que houver, irá até ao fim comigo: ela estava estática, debruçada para a frente o mais que o cinto lhe permitia, com o braço esquerdo todo esticado na minha direcção; presa entre o polegar e o indicador, mesmo na pontinha, para que fosse mais fácil eu chegar-lhe, uma pastilha Pez.
Se tudo isto já seria suficiente para me carregar de emoção, o que me deixou completamente perdido, quase ao ponto de me esquecer que estava ao volante, foi o seu olhar. Não posso dizer, porque não estaria a ser verdadeiro, que não houvesse algum sentimento de culpa nos seus olhos; havia. Mas havia muito mais que isso… Ela estava a oferecer-me um tesouro! Um pequeno tesouro infantil, do qual algumas pessoas poderão sorrir com condescendência, mas que em verdade, era tão ou mais valioso para ela do que um pote de ouro para o adulto mais avarento. E estava a dá-lo. A oferecê-lo, não devido a nenhuma pressão, mas sim, e foi isso que estava estampado no seu olhar, porque o queria dar!
Amar é a forma de relacionamento mais simples que existe. Amar é, tão só, dar. E naquele momento ali estava - manifestando-se através duma forma tão infantil mas ao mesmo tempo tão completamente real e ainda mais verdadeira - o amor.
Ia levar a minha filha de volta a casa da mãe. Como sempre, nós dois, sozinhos no carro: eu ao volante e ela sentada na sua cadeirinha, cintada ao banco traseiro, por trás do assento do pendura. É o lugar onde prefiro que ela viage, pois assim, sempre que a condução me permite posso voltar-me e vê-la sem dificuldade.
Ela ia a devorar umas pastilhas que lhe havia comprado no café depois de sairmos de minha casa. Umas pastilhas de chupar de marca Pez - coisa já antiga, esta. A certa altura pedi-lhe uma. Pedi-lha porque de repente me deu uma certa saudade de recuperar um sabor, há tantos anos para mim desaparecido. Ao meu pedido ela respondeu:
- Ó pai, não te posso dar. É que já só tenho três.
Fiquei destroçado por aquela resposta. A minha filha não é, de todo, uma criança egoísta. Tem alguma dificuldade em emprestar e partilhar brinquedos mas não tanta como alguns outros miúdos e sobretudo não tanta quanto a sua educação extremamente mimada, mea culpa também, o fizesse prever; assim sendo não esperava aquilo. Não esperava uma decisão tão "forte" da parte dela.
Respirei fundo e fiz-lhe uma prelecção sobre o que é ser-se egoísta, o significado de dar e o valor há na partilha das coisas que mais gostamos com as pessoas que mais gostamos. Não foi longa nem cansativa mas veio-me de dentro; na verdade fiquei deveras sentido e magoado pela atitude dela. Poderá dizer-se que uma criança de sete anos não terá ainda consciência de alguns actos ou práticas e que não saberá, pois não tem ainda possibilidade de entendimento para tal, o que significa tomar, ou não, certas atitudes. Se isto é correcto para muitas coisas, não o é para outras e o que se passou a seguir confirma esta minha convicção.
Ela ouviu calada tudo o que eu disse. Ainda esboçou um pequeno protesto ao princípio, mas depois parou. Eu terminei. Naquele momento estava triste; entristecido por se estarem a formar na minha própria filha trejeitos de personalidade, que não só não têm nada que ver com a dos progenitores e amargurado por me sentir impotente para alterar o rumo.
Não sei quanto tempo fiquei envolvido nos meus pensamentos. Não havia semáforos e não fiz o costumeiro gesto de me voltar para ela sempre que o sinal está vermelho e tenho de parar. "Acordei" ao aperceber-me que havia um silêncio anormal no carro. Ela raramente pára de falar ou cantar. Foi, não tenho dúvidas, esse silencio que me fez virar e olhá-la. E foi o que vi quando me virei, foi esse momento, que eu para sempre parei dentro de mim, que fotografei com os meus olhos e o meu espírito e que, haja o que houver, irá até ao fim comigo: ela estava estática, debruçada para a frente o mais que o cinto lhe permitia, com o braço esquerdo todo esticado na minha direcção; presa entre o polegar e o indicador, mesmo na pontinha, para que fosse mais fácil eu chegar-lhe, uma pastilha Pez.
Se tudo isto já seria suficiente para me carregar de emoção, o que me deixou completamente perdido, quase ao ponto de me esquecer que estava ao volante, foi o seu olhar. Não posso dizer, porque não estaria a ser verdadeiro, que não houvesse algum sentimento de culpa nos seus olhos; havia. Mas havia muito mais que isso… Ela estava a oferecer-me um tesouro! Um pequeno tesouro infantil, do qual algumas pessoas poderão sorrir com condescendência, mas que em verdade, era tão ou mais valioso para ela do que um pote de ouro para o adulto mais avarento. E estava a dá-lo. A oferecê-lo, não devido a nenhuma pressão, mas sim, e foi isso que estava estampado no seu olhar, porque o queria dar!
Amar é a forma de relacionamento mais simples que existe. Amar é, tão só, dar. E naquele momento ali estava - manifestando-se através duma forma tão infantil mas ao mesmo tempo tão completamente real e ainda mais verdadeira - o amor.