segunda-feira, outubro 13, 2003

Num olhar

Há momentos nas nossas vidas que, sabêmo-lo, por mais que vivamos, por mais que a nossa existência se prolongue e que a memória se disperse, nunca sairão de nós. Porque esses momentos são o que somos nós.

Ia levar a minha filha de volta a casa da mãe. Como sempre, nós dois, sozinhos no carro: eu ao volante e ela sentada na sua cadeirinha, cintada ao banco traseiro, por trás do assento do pendura. É o lugar onde prefiro que ela viage, pois assim, sempre que a condução me permite posso voltar-me e vê-la sem dificuldade.
Ela ia a devorar umas pastilhas que lhe havia comprado no café depois de sairmos de minha casa. Umas pastilhas de chupar de marca Pez - coisa já antiga, esta. A certa altura pedi-lhe uma. Pedi-lha porque de repente me deu uma certa saudade de recuperar um sabor, há tantos anos para mim desaparecido. Ao meu pedido ela respondeu:
- Ó pai, não te posso dar. É que já só tenho três.
Fiquei destroçado por aquela resposta. A minha filha não é, de todo, uma criança egoísta. Tem alguma dificuldade em emprestar e partilhar brinquedos mas não tanta como alguns outros miúdos e sobretudo não tanta quanto a sua educação extremamente mimada, mea culpa também, o fizesse prever; assim sendo não esperava aquilo. Não esperava uma decisão tão "forte" da parte dela.
Respirei fundo e fiz-lhe uma prelecção sobre o que é ser-se egoísta, o significado de dar e o valor há na partilha das coisas que mais gostamos com as pessoas que mais gostamos. Não foi longa nem cansativa mas veio-me de dentro; na verdade fiquei deveras sentido e magoado pela atitude dela. Poderá dizer-se que uma criança de sete anos não terá ainda consciência de alguns actos ou práticas e que não saberá, pois não tem ainda possibilidade de entendimento para tal, o que significa tomar, ou não, certas atitudes. Se isto é correcto para muitas coisas, não o é para outras e o que se passou a seguir confirma esta minha convicção.
Ela ouviu calada tudo o que eu disse. Ainda esboçou um pequeno protesto ao princípio, mas depois parou. Eu terminei. Naquele momento estava triste; entristecido por se estarem a formar na minha própria filha trejeitos de personalidade, que não só não têm nada que ver com a dos progenitores e amargurado por me sentir impotente para alterar o rumo.
Não sei quanto tempo fiquei envolvido nos meus pensamentos. Não havia semáforos e não fiz o costumeiro gesto de me voltar para ela sempre que o sinal está vermelho e tenho de parar. "Acordei" ao aperceber-me que havia um silêncio anormal no carro. Ela raramente pára de falar ou cantar. Foi, não tenho dúvidas, esse silencio que me fez virar e olhá-la. E foi o que vi quando me virei, foi esse momento, que eu para sempre parei dentro de mim, que fotografei com os meus olhos e o meu espírito e que, haja o que houver, irá até ao fim comigo: ela estava estática, debruçada para a frente o mais que o cinto lhe permitia, com o braço esquerdo todo esticado na minha direcção; presa entre o polegar e o indicador, mesmo na pontinha, para que fosse mais fácil eu chegar-lhe, uma pastilha Pez.
Se tudo isto já seria suficiente para me carregar de emoção, o que me deixou completamente perdido, quase ao ponto de me esquecer que estava ao volante, foi o seu olhar. Não posso dizer, porque não estaria a ser verdadeiro, que não houvesse algum sentimento de culpa nos seus olhos; havia. Mas havia muito mais que isso… Ela estava a oferecer-me um tesouro! Um pequeno tesouro infantil, do qual algumas pessoas poderão sorrir com condescendência, mas que em verdade, era tão ou mais valioso para ela do que um pote de ouro para o adulto mais avarento. E estava a dá-lo. A oferecê-lo, não devido a nenhuma pressão, mas sim, e foi isso que estava estampado no seu olhar, porque o queria dar!

Amar é a forma de relacionamento mais simples que existe. Amar é, tão só, dar. E naquele momento ali estava - manifestando-se através duma forma tão infantil mas ao mesmo tempo tão completamente real e ainda mais verdadeira - o amor.

quinta-feira, outubro 09, 2003

Um pouco de mim...

Apetece-me escrever sobre paixões, sobre sonhos e sobre coragem.
Apetece-me acreditar que todos sonhamos com paixões, buscamo-las e depois temos a coragem necessária para as concretizar.

Não me apetece pensar que sonhamos e que os nossos sonhos se perdem, se esvanecem e se extinguem sem que deles reste nada mais do que aquilo que um dia foram: um sonho.
Não tenho vontade de aceitar desculpas: que, ora é porque somos demasiado novos, demasiado velhos, demasiado estabelecidos, demasiado parados, demasiado sem tempo, demasiado receosos, demasiado conformados… não quero aceitar nada!
Não faz sentido não viver. É tão paradoxal que nós, seres vivos, não tenhamos consciência disso, ou tendo-a, não busquemos não-importa-onde a coragem necessária para adubarmos suficientemente as nossas utopias. É tão absurdo…
Não se envelhece por se ter 20, nem 40, nem 60 anos. Envelhecemos quando paramos de sonhar. Não deixamos de ser crianças quando temos 20, ou 40, ou 60 anos. Deixamos de o ser quando paramos de querer concretizar sonhos.
Realmente parece ser necessário um arsenal de vontade, um exército de desejo, uma urgência de ânsia pela vida para se viver.

Se não fossemos tão “distraídos” talvez ao menos houvesse em nós a consciência que nos dissiparemos, que nos dissolveremos, que desapareceremos tão depressa… Se tivéssemos a percepção, o genuíno entendimento que a Vida passa por nós e nos abandona com uma velocidade estonteante… Soubéssemos nós que vamos morrer amanhã, que não há mais tempo, que nunca há tempo!, que para nós tudo acabará ontem… Talvez assim.
Ou talvez nem assim. Não sei.
Mas quero acreditar.

terça-feira, outubro 07, 2003

E agora?

Provavelmente, com o Eliot, pus a fasquia demasiado alta...
Ora vamos lá remediar o caso: abandalhemos, então!
Acontecimento do dia: … … … … … … que dia? Que acontecimento? Que do? Nunca acontece nada!
Não… Oops! Estou enganado. Acontece é um programa de televisão! Se Acontece existe, logo Acontece acontece. Estou certo?
O quê, acabou? Então já nem o Acontece acontece!! Que tristeza… … … …
Estou desinspirado. Não adianta forçar. Vou parar.
Mas mantenho a minha: é uma infelicidade que já não aconteça.

Adoramos a pobreza de espírito, não é?

Como começar um blog...?

Go, said the bird, for the leaves were full of children,
Hidden excitedly, containing laughter.
Go, go, go, said the bird: human kind
Cannot bear very much reality.
Time past and time future
What might have been and what has been
Point to one end, which is always present.


Excerto de “Burnt Norton”, um poema de T. S. Eliot.